top of page
Buscar

(Todo) Dia de Fúria

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • há 6 dias
  • 8 min de leitura
ree

Segunda, 17h. Academia. Horário bem alternativo (nos meus 'normais' os bloqueios da minha agenda da semana tristemente já estavam preenchidos) para que, logo em seguida, eu esteja de vestido adequadamente e de banho tomado no início da noite, na Universidade, para dar aula (e, não, não é frescura ou uma coisa que se possa sempre negligenciar quando está meio embaçado. É um compromisso - dos mais importantes - eis que: um compromisso comigo mesmo. Nem discuto).


A aula que faço uma ou duas vezes por semana (que consiste em uma bateria intensa e quase ininterrupta de alternância de exercícios de força e mobilidade com aeróbicos, em aparelhos) começa às 17h05 e tem previsão de (em tese) acabar às 18h. Já passava das 17h10 quando a professora da tarde resolve aparecer e uma aluna (que por sua vez adentrou no recinto pelas 17h15/20) resolve pedir explicações porque é a primeira vez que ela vai testar aquela aula e não tem bem noção de como é. A professora explica pacientemente cada ritmo de cada movimento e como vão funcionar as alternâncias enquanto espero não tão pacientemente porque cometi o pecado de chegar um pouco antes do horário.


Azar o meu que terei que fazer um cardio a mais, subindo a ladeira de volta para minha casa com ainda mais intensidade, eis que a perda do horário - que era uma possibilidade - virou uma certeza.


****


09h45, terça feira. Médico. Agendado para às 10h. Chego no edifício onde ele tem consultório e (opa) o doutor está chegando também. Pegamos o mesmo elevador. Tranquilo, alguma sobrinha de antecedência, logo logo ele estará pronto para atender, tudo conforme o script. Apenas um problema: há pessoas abarrotando o consultório. Pacientes das 08h30, das 09h, das 09h30. Todos ali me transmutando diretamente, de adiantado - de bom humor, para um dos últimos da lista - e cabisbaixo. Não há um pedido constrangido de desculpas geral, não há um se dirigir à pequena multidão ali dando explicações (ele entra no consultório mas logo toma uma outra porta, estio passagem secreta, que o blinda do mini-aglomerado), nada. Alguns minutos passam e o primeiro da lista (um senhor que parece ter trabalhado na construção da segunda pirâmide do Egito) é chamado como que em uma dádiva oracular ("o doutor está pronto para lhe atender").


****


Ônibus. 10h30. Sexta Feira. Ninguém na poltrona ao lado. Que assim permaneça porque me acostumei pelas rotas e horários que faço a geralmente conseguir espaço entre duas poltronas ou conseguir uma pequena troca de lugar que me garanta isso ante os números vazios verificados assim que o ônibus parte. Como aqueles chicletes em tablete que você passa a mascar mais de um simultaneamente (e, de repente, quando alguém te oferece e você pega um só, algo parece bastante simplesmente incorreto na sua boca), me esparramar entre duas poltronas virou mais do que o usual, virou uma espécie de item de consumo individual de primeira necessidade. Dez, dezoito, vinte e dois minutos passam entre a abertura da porta e o embarque dos passageiros (feito na hora que a passagem comprada indica que o ônibus deveria estar saindo) e o ligar do motor. Como se o motorista simplesmente clamasse por algum gaiato que queira de última hora entrar. Como um árbitro que oferece generosos descontos na ânsia parcial de desesperadamente ver mais um gol no jogo. Eu, aflito por mim, pela minha acomodação, pela minha coluna. A generosidade é correlata à moça que entra esbaforida já no estouro dos acréscimos e caminha pelo corredor como se sua entrada fosse a senha para que o carro começasse - e enfim, começa - a se deslocar. Ela senta na poltrona indicada na passagem. Não direi qual, embora apenas direi que todos aqui sabemos que o dia em que eu me atrasar para chegar na rodoviária por um minuto e meio, esse será o dia que o ônibus terá partido com uma pontualidade que redefinirá o conceito de 'britânica'.


****


Lavanderia. Interrompi outra coisa que estava fazendo em 17h de uma quarta feira para ir ali. A mulher perguntou se eu queria prontas para segunda-feira as roupas deixadas. Falei que se fosse terça, não haveria problema, no que ela concordou entusiasmada. Prudentemente, dei uma margem de quase todo o dia seguinte, também. Ainda assim, recebi o aviso de que elas estavam quase terminando de passar ("mais meia horinha"). Tive que deixar para mais um dia.


Porque terça feira (e mesmo segunda) me foi oferecido e me fez planejar o resgate das roupas se em verdade eu teria que ir lá quinta (ontem)?


****


Supermercado pequeno aqui da quadra ao lado, ideal para compras expressas, algo como 19h24 da quinta. Um dos estreitos corredores está inteiramente inviabilizado para passagem porque uma corpulenta moça ocupa junto de seu carrinho estacionado em diagonal a extensão inteira entre as gôndolas enquanto freneticamente tecla algo em seu celular. Peço licença. O mesmo que nada. Peço de novo. Segue teclando. Peço novamente. Ainda, nada. Peço (com voz mais alta e mais próximo do rosto dela) uma inacreditável quarta vez. Ela segue em uma conversa no Whatsapp (estava já tão próximo que pude ver a tela). Tenho que de forma insólita me esgueirar entre ela (roço na moça invariavelmente, que segue imóvel de uma forma já própria de filme de terror), o carrinho e a prateleira e atinjo os corredores do fundo, de uma forma meio aventureira inesperada.


****


Há um filme que fez sucesso quando eu era adolescente. Ele se chama "Um dia de fúria" e consiste no Michael Douglas tendo o, talvez, maior ataque de pelanca masculino de todos os tempos, se emputecendo com uma trilha de problemas comezinhos como esses, e decidindo sair por Los Angeles de posse de uma metralhadora, causando um tumulto digno daquelas jogatinas de GTA em que você não quer cumprir missão alguma e simplesmente usa o cheat code do pacote de armas que coloca seu personagem com um lança mísseis no meio da avenida, explodindo tudo o que for possível enxergar e correndo aloprado de um lado para outro.


Nunca mais revi o filme, mas tenho a (leve) impressão de que há nele um tremendo potencial de discurso reacionário estilo "revoltados online" e/ou qualquer desses movimentos que impõe algum tipo de palavra de ordem (tem o partido aquele em Portugal, chamado "Chega", etc), a partir do fato de aglutinar gente cansada (de uma série tão grande quanto nebulosa e/ou meio idiossincrática de coisas). Admira que não tenha (creio que não) sido 'descoberto' ainda por diletantes ansiosos por resumir tudo de forma oligofrênica em algum de seus frames tomado como bandeira memética.


(É certamente um parente distante do filme da década anterior com o título literal - no original e na tradução - mais assombrosamente honesto do mundo, "Desejo de Matar": Charles Bronson vê uma tragédia pessoal virar estopim para sair pela rua assassinando uma dezena de punks e malacos estereotipados de um jeito meio canhestro por pouco mais de hora e meia - umas dez horas e umas centenas de malacos, se contarmos as quatro ou cinco continuações despudoradas onde o roteiro é um tiroteio inigualável que até o espectador periga ser atingido).


****


Um dos meus escritores prediletos é o Ruben Fonseca, de quem se diz também que fervia o caldo reacionário a partir de suas obras, e que colocava despudoradamente gasolina nessa fogueira. Acho injusto: cronista vívido da baixeza humana (em especial carioca) desde os tempos de trabalho policial, Fonseca retrata a podridão do mundo como cenário, e usa a calhordice de alguns como pano de fundo para outras questões, de um jeito muito mais enojante e grotesco, e menos plástico e sedutor, como o cinema costuma fazer (as obras de Fonseca transformam bem menos vilões em heróis de plausibilidade hipotética como, por exemplo, a estapafúrdia amostra do imaginário brasileiro após o primeiro filme da Tropa de Elite - que pôs audiências de massa no país todo a dar risada quanto a atos escabrosos de tortura e abuso, e a incorporar no vocabulário jargões/respostas absolutamente pueris de questões relativas à criminalidade e à sociabilidade).


Um de seus personagens (ilustrado no conto de mesmo nome) é O Cobrador.


O Cobrador está sem grana e sem perspectiva e um fato corriqueiro e despretensioso (o valor sugerido pelo dentista pela consulta) se transforma no estopim de uma escalada violenta e animalesca de uma jornada onde ele passa assumir um único mote, e a se pautar por uma única coisa: ele não deve mais nada a ninguém. Todos devem a ele. Tudo. A sociedade, os transeuntes, tudo. O mundo todo.


O que é uma primeira hipótese chocante mas que pode ser levada com alguma ironia vai escalando para uma descrição absolutamente perversa e alucinada onde sobram estupro, morte, sangue e uma tendência cada vez mais gratuita à violência e a uma espécie de rebeldia psicótica e um tanto pueril, que só se amplia. Não é algo fácil de ler. As descrições são cruas e a escrotidão do personagem e sua indiferença são pesadas de se digerir. Uma só certeza: ele não deve mais nada a ninguém. Se emputeceu. "Chega".


****


Creio que a difícil pergunta sobre como podemos usar, discutir, implicar, potencializar, não negacear, tentar dosar, trabalhar com, e, enfim, assumir a pauta do(s) desejo(s) na política e na sociabilidade - tão cara, simbólica (e enigmática) para uma série de especulações filosóficas - é, em primeiro lugar não fingir que eles não existem, que nossa vontade, gana, pura, ilógica (e perigosamente irracional) não existe.


Poucas coisas têm o condão de se conectar tão fortemente à raiva diante da ameaça e da injustiça do que a reação raivosa. Ira boba, ira santa. Whatever. Tão poderosa uma quanto a outra. Os desejos não têm partido, ideologia ou limite. Suas acoplagens, essas, sim.


Comecemos não querendo encobrir com um edredom moral pesado e grosso a nossa ira irrefreada diante das coisas que nos abalroam dia após dia. Assumamos ela. Não precisa praticar nada, necessariamente (por favor, já basta os maníacos que temos por aí), mas nada mais improdutivo e incubador de ódio gratuito (e desorientado, quando eclode) do que essa suposta obrigação de ser zen e/ou de receber com graça e superioridade o rol incrível de injúrias que nos são destinadas por tudo que está torto no mundo.


Ando convencido que a positividade tóxica carrega um grau de toxina mais elevado do que a versão antípoda da negatividade.


Não sei se vocês tem vocação para Smilingüido. Eu, fora.


UM FILME: consegui ver a proeza de ver três filmes (longos) no espaço de pouco mais de um final de semana e os três aborrecidos. Anêmona tem uma carga dramática interessante e conta com o charme do retorno (breve?) da aposentadoria de um dos meus atores prediletos, Daniel Day-Lewis, mas, por deus, é do tipo que não acaba nunca (e você usa o controle remoto para ver a barra de tempo e descobrir que falta mais do que você achava). The Smashing Machine, cinebiografia do ex-campeão de MMA e ex-viciado em analgésicos, Mark Kerr, prometia uma discussão existencial interessante para a leitura da mente do homem que era uma espécie de Incrível Hulk real. A obra é rasa, boba, complacente e de uma pieguice atroz. Sobre Frankenstein de Guillermo del Toro não quero sequer falar. Já vi novelas das seis da Globo bem melhores.


UM LIVRO: terminei o da semana passada e comecei outro. Talvez semana que vem venha aqui contar para vocês sobre.


UM DISCO: escutei o Lux da Rosalía e talvez a minha heterossexualidade não me permitiu ser capturado como aparentemente todo o público queer da internet foi. Adoro a cantora e suas escolhas de texturas e de estrutura para as músicas são bem chiques, de fato. A aposta nessa coisa "catolicismo profano" é sempre um acerto no mundo pop. Mas preferia ela de MotoMami.


 
 
bottom of page