- Gabriel

- há 12 minutos
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Em uma frase atribuída a Woody Allen a partir de uma fala em "Desconstruindo Harry", de 1997, as palavras mais bonitas que uma pessoa pode escutar não são "eu te amo", mas, sim, "é benigno".
Erma Bombeck, escritora e colunista, havia usado a ideia alguns anos antes, embora sem a dose de sarcasmo e neurastenia típica dos textos e personagens de Allen em seus filmes.
O fato é que eu estava com uma dor que me consumia o baixo ventre e os quadris na semana passada, por dias a fio, a ponto de em dado momento do domingo de manhã de sol ardente (a luz queima a pele por baixo da camiseta - prenúncios de um verão macabro, como foi a impertinência do frio esse ano invadindo espaços cronológicos que não lhe pertenciam) eu busquei um pronto-socorro.
Após uma bateria de exames e esperas, e uma gentileza (e um protocolo, compreensível) meio constrangedora, que me fazia circular por dentro da unidade de cadeira de rodas, mesmo podendo caminhar normalmente, apesar dos pesares, a conclusão ficou a léguas de ser apavorante ou tensa, mas igualmente próxima do que se poderia chamar de incômodo: nada. Nada de anormal em três tipos distintos de verificações. Nada que se possa dizer: é isso e vamos combater isso com isso e mais isso.
Dor. Dor sem centro, sem núcleo, sem fato gerador, evento causal, local de quartel general, vilão identificado. Sem nada. Dor tipo 'veja se esse Buscopan resolve'.
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Isso é meio inquietante, sob certo aspecto.
Claro, sem dúvida um melhor cenário do que alguém identificar algo no estilo "estou chamando agora o helicóptero para você ser transferido hoje mesmo para Boston", ou coisa do tipo, mas não deixa de ser algo que machuca em um mundo tão já sem linearidade e desprovido de sentido. Agora essa: temos coisas que nem imagens computadorizadas e especialistas sabem bem dizer de onde vem e, especialmente, por favor, para onde (e quando, enfim) vão.
Cada vez temos menos respostas no mundo que nos cerca, a quantidade de variáveis e indefinições conduz para um cenário onde ninguém consegue afirmar categoricamente nada sem ser pedante ou secretamente reticente - e, aliás, não falta muito para nos transformarmos em uma paródia ainda mais impressionante d'O Castelo de Kafka, onde além de não conseguirmos falar com efetivamente ninguém que resolva nada, vamos falar apenas com versões ruins de I.A. onde digitamos sempre o número respectivo ao fato de que nenhum outro dos números anteriores atende de fato nossa dúvida/expectativa (para não falar da horrível experiência de conversar com uma gravação que simula uma voz de barítono confortável e o mexer em teclados mecânicos antigos).
A ausência de resposta taxativa onde ela deveria haver (ou onde fomos treinados para que ela haja) é agoniante.
Geralmente nesse mote do panteão kafkiano se fala em O Processo, mas concordo com M. Fisher na ênfase dada a uma das grandes obras primas em termos da leitura da angústia da vida, que é O Castelo. Um livro aliás tão perfeito em sua trajetória maldita que o próprio Kafka não conseguiu concluir em vida, e, assim, pedindo perdão pela morbidez da paródia, tornou-o um verdadeiro testemunho de si mesmo quanto à burocracia e nossas dúvidas deixadas ao deus dará. O final mais perfeito para a proposta da obra foi de fato ela ser interrompida sem conclusão, naquela que poderia ser considerada um dos statements artísticos mais significativos de todos os tempos (caíamos na real: o cara não queria morrer pelo livro, para provar um ponto, mas coincidências acontecem).
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Se eu fosse um completo imbecil - do tipo que se arvora de levar a retórica (e a insolência) a seus últimos limites (do tipo que se crê "polêmico" quando está só sendo desagradável), ou se eu fosse aquele tipo de inútil que fica elucubrando tips filosofais à moda formalmente arrojada, mas absolutamente inconsequente, eu poderia dizer que há algum ponto de vista onde o diagnóstico de "maligno" é até "melhor" que o de "nada", mas isso eu deixo para a (vã) filosofia desse tipo de louco - ou cretino.
Entre a dor e o nada no sentido sartriano eu estou com ele (embora, meu deus, que amolação). Porém entre o nada e o algo, nesse sentido, sou nada futebol clube desde pequeno - e vou para o estádio fardado. Mesmo sonhando com algum diagnóstico de almanaque.
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Quando um médico ou médica (era médica, domingo) faz um ultrassom em mim fico absolutamente embasbacado, dado que aparece um borrão na tela, entremeado por outros três borrões e alguns lapsos de luzes azuis e vermelhas, e a pessoa meticulosamente mede um borrão desses com um cursor, e ante um amálgama mal e mal distinto do fundo (igualmente borrado) da tela dizendo algo do tipo "aqui está a parede interna da tua bexiga".
Ciência em um grau que você não tem qualquer chance de compreender e magia são basicamente a mesma coisa - essa não lembro quem disse ou escreveu.
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Uma vez fiz um exame cardíaco e percebi que - nos instantes em que o médico deixou o som do aparelho ligado, uma análise de alta precisão dessas revela algo além do que o clichê de efeitos sonoros ou um ouvido no peito alcançam. O coração medido dessa forma, não faz "tundum". Faz algo como wacka-whomwhom wacka-whomwhom wacka-whomwhom .
Fiquei emocionado porque consegui encaixar uma das minhas músicas preferidas - Satisfy My Soul, Bob Marley - na batida do meu coração, e a cantei mentalmente por alguns instantes (wacka-whomwhom). Sublime. Deve ter gente que já chorou em sala de ultrassom por coisas mais horríveis, certamente.
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A bexiga não faz som - ou ao menos não foi ligada a caixa durante o procedimento. O púbis idem.
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Encontrei uma conhecida na rua dia desses. Ela é uma do tipo que um dia, um exame, encontro algo, estilo, muito algo.
Após um ano de privações e, agora, com os cabelos curtos e grisalhos, sorriu e disse que estava tudo bem. A abracei, e creio que o abraço fez mais por mim mesmo do que por ela.
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Bom que o Emicida tenha lançado essas mixagens de letras antigas suas em cima da trilha de músicas dos Racionais (o projeto Emicida Racional). Eu estava quase me considerando a maior vítima cheia de problemas do mundo quando escutem a versão de "Orra" misturada com a de "Vida Loka parte 2". Tire suas conclusões.
UM FILME: esperava algo de linearidade e padrões (respostas?) também em Morra, amor, de Lynne Ramsay. Não li o livro de Ariana Harwicz onde ele foi baseado e pratiquei a rara, hoje em dia, ideia de assistir o filme sem saber nada além do que os trailers oferecem. A coisa, oscilando de cenas de ternura e sexo entre Robert Pattinson e Jennifer Lawrence e a sugerência de uma escalada de tensão na relação, pensei, se resolveria entre o drama e algo como o suspense psicológico. Quiçá um crime envolvido ou coisa parecida. Há muito suspense, e muito de psicológico (e quase nenhuma cena sem tensão), mas de um jeito bastante agressivo para o qual eu positivamente não estava preparado.
UM LIVRO: como referi há algum tempo atrás, embarquei na coisa de ser admirador fervoroso de Nick Cave apenas em algum momento da década passada - não há porque mentir que ele era um artista importante para mim para além de alguém que eu achava 'bom' sem ser digno de muita nota. De brinde, ainda (o mundo é injusto) cheguei a tempo de compartilhar com seus fãs mais raiz aquela que parece ser a fase mais esplendorosa de sua carreira. E a mais acessível, também. Há farto material musical de cunho autoral-personalíssimo (e qualificado) nos últimos anos, há o contato direto dele com seu público (respondendo perguntas em forma de conselhos em seu site), sua literatura ganha destaque com a adaptação d'A morte de Bunny Munro que acaba de estrear e seus shows têm sido merecidamente hypados. Excelente hora para ler Fé, esperança e carnificina, onde Cave se abre em conversas altamente íntimas com Seán O'Hagan, justificando uma fama agora consolidada de uma espécie de velho sábio e 'guru' mas sem nenhum charlatanismo. Especialmente sua visão quanto à religião é surpreendentemente sóbria para alguém de quem um dia se esperou bravatas punk no quesito.
UM DISCO: saiu o Anthology, volume 4 dos Beatles. Ouvir os Beatles ensaiando (e errando) continua sendo um dos maiores prazeres sonoros possíveis para um fã de rock. Não há como falar mais sem ocupar uma sequência de umas trinta páginas. Então fico por aqui. Apenas a menção ao disco (e me veio nesse instante à mente a versão de Tell me Why ali presente) já me fez sorrir. PS: as gravações lançadas cobrem quase toda a linha do tempo da carreira do quarteto, sem se incapsular em uma demo específica de uma sessão específica. Há coisas da tenra inocência inicial até materiais da fase em que o fim era iminente. Mas segue tudo lindo. Tudo absolutamente incrível.