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Tempo. Mas não aquele.

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • há 2 minutos
  • 6 min de leitura
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Quinta feira mal virou Sexta. Madrugada.


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Que pavor esse início de texto. Parece aquela música do U2 ("...green light / Seven Eleven")


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Tempo


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Uma das coisas que mais odeio na vida são aqueles períodos onde há tantos afazeres que o sujeito basicamente tem dias inteiros em sequência milimetricamente planejados de tal modo que você sabe com o que vai ocupar manhãs, tardes e mesmo noites por sequências a fio - e, tal um consultório médico, ainda tem outros afazeres que aguardam brecha entre cancelamentos (que, no meu caso, nunca cancelam, real, mas se mostram impossibilitados de realização por alguma coisa fora de meu alcance que só os faz acumular para outros momentos tão ou menos inoportunos e também atabalhoados).


Ter uma coisa fora de seu alcance é desesperador porque em parte há a possibilidade de ser aquele tipo de coisa que precisa de uma urgência fatal, ou, em outra, conduz (não sei você, a mim, sim) a um tipo muito perigoso de letargia porque andamos (não seu você, eu, com certeza) naquele momento do ano em que tudo que você quer é algum arrego como quem alivia uma conta no carnê mediante algum empréstimo tomado à moda inconsequente e que em uma visão macro da coisa tornará tudo ainda pior.


(Como na minha época de colégio onde, recordo, uma mania meio bizarra de algumas colegas cujo mote de vida era espernear a qualquer custo para que datas de provas fossem adiadas, como se isso resolvesse alguma coisa em termos de a data da avaliação ir sendo postergada até simplesmente não existir. Não havia qualquer estratégia ou ocasião particular casuística, era simplesmente um ato automático de clamar para adiamentos non sense. Não me deparo muito com isso hoje, na qualidade de professor).


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(Lembrei agora daquela piada do "- Acorda, filho, está na hora da aula - Mãe, eu não quero ir hoje - Mas você é o professor!").


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Recentemente assisti a uma palestra da Ana Maria Gonçalves. Já tinha lido muito, mas jamais tinha escutado ao vivo uma imortal da Academia Brasileira de Letras (tirando o Gilberto Gil, onde a lógica se inverte, enfim). Ela conduziu sua reflexão apelando para sua crença e falou muito sobre negritudes e orixás, especialmente sobre Iroko, o Tempo, representado em constância e sabedoria por uma árvore de Gameleira Branca.


Ela associou a música Oração ao Tempo, do Caetano, ao Orixá (interpretação que por óbvio sempre me escapou) e comentou uma fábula sobre a relação de alguns aldeões com a entidade, sua onipotência e o preço salgado que ela cobra por algumas promessas e ofertas que lhe são feitas. Iroko é severo na mesma medida em que é sábio, prudente e inevitável.


O tempo aqui não é um relógio opressor nem o peso de algum compromisso: é algo que pode ser mais assustador em sua grandeza.


Se bem que - sem duvidar de Ana - me parece que a canção do Caetano traz mais uma relação de um acordo que tem ares de uma comunicação do cantor com o tempo em um sentido que parece ele se resolvendo consigo mesmo e afirmando seu trânsito pelas passagens e marcas que o senhor, tão bonito traz.


Um trecho é crucial


E quando eu tiver saído

Para fora do teu círculo

Tempo, tempo, tempo, tempo

Não serei, nem terás sido

Tempo, tempo, tempo, tempo


O tempo identificado com a vida em si. Quando ele tiver saído, nem ele, nem o tempo "terá sido". Não há nada fora do tempo, porque vida é tempo.


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Um aplicativo desses enxeridos me anunciou dia desses que havia sido lançado (já que falamos nele) uma edição especial comemorativa do disco Raça Humana, de Gil, de 1984, onde outros artistas regravam os clássicos desse álbum.


Confesso um certo enjoo recente com a música Tempo Rei desde que ela virou tema de propaganda de banco e arroz de festa que deu nome à última turnê do artista, mas impossível não ser sugado pela delicada versão na voz de Mãeana e o frescor que meio que rega de forma diferente esse combalido sucesso.


Gil também parece falar de forma mais literal de aprendizados e finitude do que de alguma força mística suposta:


Pães de Açúcar

Corcovados

Fustigados pela chuva

Pelo eterno vento

Água mole

Pedra dura

Tanto bate que não restará nem pensamento


Mas quem garante que não há uma força, uma energia na própria constatação de como se enfrenta essa finitude de modo a ter consciência de que tempo passando é vida, inexorável?


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Estou lendo (relendo, na real) a trinca Kairós, Alma Vênus e Multitudo, que Antonio Negri escreveu quando retornou do exílio para cumprir o resto da pena que faltava de sua condenação eminentemente política na Itália. É fato exaltado até por ele mesmo que, sempre que esteve no cárcere, pariu algum (ou alguns) livros. Esses três estudos interligados estão entre as coisas mais sublimes de sua obra.


A construção fundamental de um materialismo revolucionário passa, para o Negri daquela cela, em Roma, em se enxergar a construção do porvir como a tarefa primordial, e para com parar, definitivamente, de se ostentar uma relação com o tempo (a história, o passado, e especialmente o futuro) como uma coisa gigantesca que paradoxalmente se move-imóvel, tal um planeta circulando o sistema solar com uma inércia tristonha, em realidade não indo, de fato, a lugar algum. À(s) medida(s) - entre elas, a conceituação de algo que precederia o próprio algo e suas (re)construções - ele opõe eternidades fugazes (tal a chama, na voz do poeta, que se apaga, invariável, mas é eterna - enquanto dura) que não estão ali para buscarem uma versão triste e cronológica de 'infinito', mas de um caminhar que as reconfigura constantemente a partir do que vamos querer e precisar. A chave é a desmedida. Há uma desmedida entre os eternos que passaram e o porvir. Kairós, e não Cronos: a flecha lançada para frente não como uma prévia de rota matematicamente retilínea, mas como a oportunidade de realização. Em verdade, os dedos segurando a flecha, trêmulos, pela tensão do arame do arco. O momento preciso do lançamento, onde tudo é possível. O tempo oportuno, qualificado. O tempo vivido, não o tempo como se em uma ordem sequencial. Um conceito de história não aprisionado por linhas do tempo (nem comumente, para trás, nem, perigosamente, para frente). O eterno enquanto dure, tendo-se o dure como obra, como empenho, como construção. Desejo, necessidade, vontade. Momento certo para. Tudo é eterno, embora nada seja infinito.


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Me ocorre que a desgraça onde estamos enfurnados é tanto sobre nos impelir esse conceito de tempo que carrega um conceito de história e de futuro bem específicos consigo (movimento de um imóvel, de forma sequencial e previsível. Sucessão numérica) do que sobre fatores mais diretamente expostos. Se assenhorar do tempo - ou fazer um acordo com ele, tal um Caetano. Dominar o tempo, ou clamar por sua versão professoral, como Gil. Inventar o tempo - e o que virá. Premissas. Tarefas.


A armadilha é nos imporem o tempo de um Cronos burocrático, para aniquilar o tempo de um Kairós revolucionário.


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Naquele filme de alguns anos atrás da Mulher Maravilha, ao menos uma anedota memorável e bem sacada: Diana (Gal Gadot) recebe com alguma surpresa a visita acidental de um homem mortal-normal (Chris Pine) na ilha encantada de Themyscira, lar das Amazonas. Ao vê-lo se banhando, olha com curiosidade para algo como que no púbis do rapaz (assim ao menos o público percebe pelo enquadramento de câmera) e pergunta "o que é isso?". Nota-se, depois, que ele está com as mãos mais ou menos àquela altura e ostenta um relógio de pulso, o verdadeiro alvo da curiosidade. Ele define encabulado pela situação o relógio como um medidor de compromissos da vida cotidiana, dando exemplos aleatórios do que ele pode indicar em termos de horários e ela (ainda olhando fixamente para ele naquele ângulo) arremata: "E você deixa uma coisa tão pequena ser a responsável por todas suas decisões?".


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Menos kairológico do que gostaria, mais cronológico do que minha saúde aguenta. Está tarde e meus compromissos de homem-mortal amanhã vão cobrar um preço não tão pesado quanto o de Iroko ao ser equivocadamente ludibriado, mas bem forte, acredite.


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Não bastasse ser a melhor faixa do álbum, a Tempo Rei da Mãeana guarda um lindo easter egg ao final, unindo justamente o hit de Gil com a oração de Caetano, fazendo os dois amigos eternos se darem as mãos fora do tempo sequencial, em alguma outra dimensão que eles vão partilhar mesmo quando já não tiverem mais sido, provando que pode não haver nada fora do tempo cronológico, mas que há muito mais em termos de tempo para aprendermos.



UM DISCO: bom, meio que já está dado, não? (PS: Vamos Fugir é outra canção já manjada demais, mas não é por isso que não vou me ofender com a versão canhestra que o disco traz. Não quero sequer falar no assunto).


UM LIVRO: adoro Samir Machado de Machado. Seu Homens Cordiais é uma experiência emocionante e divertidíssima (melhor ainda que o Homens Elegantes que lhe antecede narrando uma saga contínua). Não havia lido ainda O Crime do Bom Nazista, novela curtinha e que parece apelar para uma pieguice em certo momento, mas que cumpre um papel importante ao promover denúncias e paralelos mais doloridos do que deveriam ser a essa altura do campeonato. Uma escolha que narra o Brasil e o mundo atuais de forma incisiva e (mal!) disfarçada de outra coisa.


UM FILME: ____ estou fraco no quesito essa semana. Mas essa noite de sexta promete. Terei tempo, tempo, tempo, tempo. Ou aparentemente.

 
 
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