Core
- Gabriel

- 17 de out.
- 7 min de leitura

Era um show dos Replicantes - quase impossível precisar quando e onde, dado que Replicantes foi possivelmente a banda que mais vi tocar na vida (sabe como é, eu estava em Porto Alegre, eles também). Era em algum inferninho meio desclassificado qualquer, se bem que se fosse no Bar Opinião também não seria surpresa (memórias meio turvas de algumas coisas da época - algum ponto do tempo e do espaço entre 1995 e 2001).
Em meio a uma das mais graficamente violentas rodas que já vi em um show como esse, uma voz parecia tão alta a ponto de se impor mesmo ante o som enlouquecedor: "Perdi o tênis". Era a voz de um amigo meu.
Como se umas seis ou nove pessoas ao redor fossem mentalmente teleguiadas, abriu-se uma espécie de semi-cordão de isolamento em um curto perímetro do epicentro do furacão da pista até que um dos pés do tênis foi localizado. Mal ele fora calçado de novo no pé, o círculo se desfez assim como o transe solidário momentâneo, e a alegre e consentida pancadaria seguiu normalmente.
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Em Turn It Around: The Story of East Bay Punk, documentário de 2017 que enfoca a cena do hardcore californiano situado na parte leste da Baía de São Francisco, boa (e merecida) parte da narrativa consiste em descrever o que aquele garotada promoveu com o "Alternative Music Foundation", também referido pelo seu endereço - Gilman St. 924 (Berkeley), ou simplesmente "Gilman", que nada mais era do que a atitude do it yourself levada ao extremo: até ver o filme, ano passado, eu achava que esse era simplesmente um clube noturno importante na cena e um lugar que calhou de ficar famoso por revelar bandas que eu sempre curti, como o Operation Ivy (que viria, em termos, a se transformar no Rancid), ou o Sweet Children (que anos depois viraria o Green Day). Mas era muito mais do que isso
Em realidade, as bandas criaram/encamparam um espaço para que todos pudessem promover uns aos outros e fortalecer a cena que se criava. Comparecer aos shows dos amigos e fazer vibrar aquele ambiente como um verdadeiro centro cultural onde se podia ir e propor qualquer coisa era importante: não se tratava de uma casa de espetáculos de 'propriedade' da galera em um sentido formal exclusivo, mas em um lugar que, assim como o seu movimento, eles construíram, juntos. E onde brincavam, se encontravam, viam surgir ideias (boas) e morrer em meio minuto outras (ruins). O crucial era: atitude e compromisso em fazer erguer e potencializar uns aos outros.
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De um jeito absolutamente inesperado, um filme totalmente pop-chiclete com excesso de cores e uma pendência para algo um tanto infanto juvenil (porém sem ser mandatoriamente imbecil) o filme recente do Superman (James Gunn, 2025), gerou uma inusitada discussão e o resgate de uma canção de uma banda sueca chamada Teddybears, lançada de forma meio desapercebida em 2006, que conta com Iggy Pop nos vocais ("Punkrocker"), usada como tema símbolo em um momento-chave de ternura que define os rumos escolhidos para essa nova versão do personagem, onde ele reafirma sua humanidade incurável, para além dos poderes que o equiparam a uma espécie de divindade.
Não houve comentarista atento que não enfatizou a questão de que o recado dado era bem simples: acreditar nas pessoas, ter esperança no coração, é punk.
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Há um epíteto que tem vindo com alguma força e insistência nos últimos tempos e que ganha sucesso talvez não apenas por fazer sentido, como também pelo fato de que nunca vimos nada tão exacerbado como recentemente, em termos de cretinice humana: em um mundo tão perverso, poucas coisas são mais punk do que ser gentil. Poucas coisas são mais atitude do que demonstrar afeto.
(Nunca esquecer: hippies são pessoas horríveis que se esforçam para parecer boazinhas. punks são pessoas incríveis, que fingem ser do mal)
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Vivi, no sábado passado em uma das experiências mais punk que já pude testemunhar na vida. Fui assistir uma noite de programação de luta livre na EWF - Evolution Wrestling Force. Uma coisa que não é de meu gosto pessoal, nunca atraiu minha atenção para além de algum tino meio galhofeiro, não é um programa onde eu me imaginaria em um sábado à noite e - aqui, uma das principais coisas (e das mais sensíveis também) - eu sequer sabia que existia, há pouco mais de dois meses.
O evento em questão, que ocorre na periodicidade mensal com temáticas e programação variada, era o festival de confrontos nesse mês denominado "Halloween Brutal - Morte Súbita", e, conforme os mais entendidos, prometia alguns confrontos bastante simbólicos para o lore do wrestling gaúcho e brasileiro. Caso você não saiba, a "luta livre" nesse estilo artístico tem grande parte de sua força advinda do storytelling que permeia os lutadores (tais quais personagens): há os vilões (cuja entrada é costumeiramente adornada por um festival de vaias e impropérios), há os heróis e, dentre esses, os cativantes preferidos do público. Existem as rixas, existem pendengas e questões que ficam dos confrontos anteriores, havendo um conjunto narrativo potente e interessante que nos entusiastas gera toda uma ambientação própria.
No post do blog que anunciava as atrações daquela noite, esse trecho elucida muito:
Mais adiante no card, o Campeão Riograndense Dano Cerebral e o Leão de Tsavo Oba Khan irão ambos enfrentar oponentes do Império do Medo pelo segundo mês consecutivo. Dano irá defender seu cinturão contra André, o Ogro. O gigante de 2 metros de altura e 170 quilos é a mais nova aposta da organização para recuperar o cinturão gaúcho após John Hammer ter falhado em recuperá-lo. Oba Khan vai enfrentar Gazz e John Hammer em uma handicap 2 contra 1. A luta organizada por Ryan, o Patrão aparenta ter dois propósitos: O primeiro, mais óbvio, é tentar parar a força imparável que Oba Khan se tornou desde que ele se voltou contra o Império do Medo. O segundo, especulação minha, é também punir Gazz e Hammer que tem repetidamente falhado em proteger a reputação do Império.
A Império do Medo (descobri no dia) é essa união de lutadores detestáveis, desleais e matreiros que o público local xinga e odeia sem perdão (havia inclusive uma facção de torcedores dos oponentes deles que ostentava cartazes provocativos dizendo "Imperinho do Medinho", que foram rasgados por Ryan, O Patrão, assim que se apresentou no ringue e foi de perto encarar o público da torcida hostil, que foi ao delírio lhe inventando ofensas com criatividade). A noite, assim, prometia um tom de revanche e acerto de contas construído em eventos anteriores. Houve inclusive algumas surpresas: num dos cards mais esperados da rodada, o Campeão do estado, Dano Cerebral (se apresenta trajando jaleco e parece alguém que fugiu do Asilo Arkham usando roupa de um dos médicos), perdeu o confronto e o cinturão para o gigantesco Ogro (pense em um cara grande), e causou comoção na plateia (enquanto Ogro, provocativo, recebia insultos e ostentava seu prêmio com orgulho a caminho dos bastidores).
As lutas de duplas seguem aquele ritmo com tiradas típicas que fazem parte da mitologia da cultura do wrestling, com competidores entrando no ringue fora do momento autorizado, configurando tumultos diversos, além de um misancene padrão onde o juiz é constantemente ludibriado (além de ser tão ou mais alvo de xingamentos do que os lutadores vilões) para que não penalize visíveis traquinagens que são impacientemente alertadas pela plateia. Os gritos de incentivo para que o herói reaja e interrompa a contagem do juiz para o nocaute, mostrando que segue vivo na disputa são igualmente parte inseparável da mitologia.
A lutadora Julie Brooks, única mulher a se apresentar no ringue, enfrentou um oponente masculino e recebeu uma chuva de incentivos para vencer com moral ("misógino", gritou uma moça ao meu lado na plateia quando uma das pernas de Julie era torcida no chão e ela parecia estar entregando os pontos).
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Enquanto o fluxo de long necks vendidas a preço honesto na cantina do ginásio seguia firme, outra das grandes atrações da noite ganhou os holofotes: o público cativo dos eventos comprou a ideia de Dia das Bruxas e se engajou com força no "Concurso de Fantasias" promovido na noite. De personagens de quadrinhos e 'cultura pop' em geral, passando por referências às lutas e ao próprio enredo da EWF, todos fantasiados e fantasiadas foram tão aplaudidos quanto os lutadores presentes, mesmo que algumas fantasias fossem improvisos mais simplórios frente a outras bastante elaboradas.
Foi aí que num estalo constatei algo muito bonito: todas as pessoas ali, a seu modo, participaram da composição da diversão da noite, e todas foram aplaudidas, eram saudadas pelos nomes dos personagens representados. Eram recebidas com sorridos. Eram cumprimentadas. Se sentiram encorajadas, empoderadas. Desfilaram no salão e foram ovacionadas. Não havia ninguém envergonhado ou com algum receio de constrangimento.
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No caminho para o bar, derrubei sem querer a cerveja de um sujeito que assistia das cadeiras trajando uma camisa do Liverpool. Ambos nos desculpamos (eu, pelo óbvio, ele, por ter a seu ver deixado a garrafa dando sopa no caminho de passagem). Comprei uma garrafa a mais e entreguei para ele na volta. Sorriu. Nos cumprimentamos ("Perdi o tênis" ouvi na mente, como em um eco distante, meio fantasmagórico, mas aconchegante). Punks (ainda que não se imaginem o sendo) never walk alone.
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Outro momento emocionante foi o de luzes acesas, quando os lutadores ainda adornados por parte de suas fantasias de batalha compareceram em meio ao público presente já no clima do encerramento da noite. Fiz questão de cumprimentar um a um que cruzei. Fui abraçado com entusiasmo por todos, e alvo de perguntas sobre se tinha gostado do espetáculo. Porque foi isso. Meio gladiadores, meio atores e atrizes, aquela galera nos ofereceu um espetáculo. Algo de um lúdico circense, algo de esporte radical, a EWF sobrevive do amor da trupe em entregar sua história, e do amor do público em comparecer para manter viva a chama do universo que se desenvolve naquele galpão.
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Uma das coisas mais marcantes que percebi naquela noite, foi algo que poderia ter passado batido por muita gente, mas jamais por mim, inclusive, cria do 4o Distrito portoalegrense, que viu a casa dos pais ficar isolada em meio a uma rua que se encheu de água para além da altura das marquises na enchente do ano passado: na porta de um dos banheiros do recinto, uma linha (comum, ainda que varie a forma de apresentação) entre estabelecimentos dessa região da cidade, marcava a altura onde a água havia atingido no ginásio, adornada com a expressão "Vencemos 2024". A galera da EWF luta (em vários sentidos) para vencer todo mês. E vence.

Poucas coisas são mais punk.
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No final de Turn it around o narrador (que, por acaso, é Iggy Pop) anuncia que aquela foi a história de jovens que resolveram fazer alguma coisa. E pondera que isso está, certamente, acontecendo em algum lugar, agora, antes de asseverar que "(...) deveria estar acontecendo em todos".
UM LIVRO: comecei a ler Máquina Kafka de Félix Guattari. Eu disse comecei. Acalmem-se.
UM FILME: gosta minimamente de punk/hardcore? Olha esse aí sobre o qual eu falei no texto
UM DISCO: meu deus, o disco autointitulado do Operation Ivy fará 40 anos em breve.